Uma banda sonora literária: A música na (des)construção da ilusão cinematográfica na literatura

Do jogo de influências entre cinema e literatura resulta, entre outras, a noção de “literatura cinemática”, a partir da qual sobressaem: 1) comparações entre as acções do narrador literário e da câmara de filmar; 2) discussões sobre a apli- cabilidade do conceito de “montagem” ao romance; e 3) observações sobre a possibilidade de invisibilizar o narrador na literatura, sustentadas por uma compreensão do cinema como “showing, not telling” (cf. Kellman 1987; Bellardi 2017). Ao fabricar o conceito de “literary soundtrack”, Graham T. Austin estende estas comparações à função que a música ocupa em cada uma destas artes, permitindo-nos discuti-la como elemento que pode ou não contribuir para a concepção de uma literatura cinemática. Segundo o autor, esta banda sonora gera respostas extra-literárias no leitor e, por isso, intensifica, dá cor e comenta a narrativa (Graham 2013, 77). A estas funções devemos, porém, juntar uma outra centrada no plano temporal da ação, sobre o qual a “música para o ouvido interior” e a sua qualidade “estática” (Cook 1990, 86) poderão exercer alterações determinantes. Estas, diferentes consoante o leitor associe determinada banda sonora literária a exemplos reais e audíveis, ou a considere apenas no plano imaginário, abrem espaço para uma discussão do conceito de “ilusão cinematográfica” de Henri Bergson, que nos re- mete para uma compreensão do cinema como distorção da realidade – definida pelo autor como movimento constante (cf. Bergson 1907) – e novamente para a discussão do que se entende por “literatura cinemática”. A partir de uma análise da obra literária de Haruki Murakami – caracterizada por múltiplas referências a obras musicais reais –, bem como de exemplos de música imaginária que se lhe opõem, esta comunicação pretende compreender de que modo pode a música – real ou fictícia – fomentar ou desmascarar a ilusão cinematográfica no tempo do texto literário.