Abstract
Perante o rápido processo de modernização na Europa oitocentista, a segunda metade do século vê nascer uma crítica da modernidade industrializada e urbanizada através de meios artísticos e literários, amiúde evocando uma nostalgia por um passado idealizado pré-industrial.
No caso da cultura austro-alemã, esta crítica assume tendencialmente uma particularidade: no imaginário germânico, o passado ganha forma como fonte genuína da identidade, Deutschtum, legitimizando a rejeição
de determinados valores da modernidade considerados estrangeiros (ocidentais) e decadentes. Na prática, esta noção identitária não é estanque nem sempre propriamente étnica, tal como o demonstra a apropriação de variadas figuras não germânicas para o(s) cânone(s) da Deutschtum. Por outro lado, também fora dos territórios germanófonos se encontram fortes correntes germanófilas, subscrevendo aberta ou
tacitamente os valores artísticos subjacentes à idealizada identidade germânica.
Porém, definindo-se em boa parte num quadro de negação, a noção de Deutschtum em finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, agudizada pelas tensões bélicas, vive de um sistema dicotómico de valores opondo aquilo que é supostamente alemão àquilo que o não é: cultura (Kultur) / civilização (Zivilization); comunidade (Gemeinschaft) / sociedade
(Gesellschaft); profundidade / superficialidade; idealismo / materialismo; etc. A arte e, especialmente, a música austro-alemã, como metáfora do espírito no centro da identidade germânica, traduz para os seus discursos essas noções.
Existindo já alguma literatura a relacionar Deutschtum e composição, crítica, teoria e análise musical, no domínio da interpretação esta é ainda apenas pontual. Como se manifestam então noções de Deutschtum em intérpretes que atravessam esta época, e que consequências têm elas na sua conceptualização musical e visão para o futuro?
Procuraremos nesta comunicação dar um contributo para esclarecer estas questões, com um foco em pianistas germânicos nascidos sobretudo nas duas últimas décadas do século XIX. À semelhança de outros artistas de uma primeira vaga modernista, referências a Deutschtum e/ou aos seus valores são recorrentes e, até certo ponto, estruturantes em certos aspectos do seu pensamento, tornando-se este conceito num agente de polarização em vários eixos. O mais óbvio será, talvez, o pseudo-étnico, que opõe com frequência as características presumidas da música alemã em especial às da francesa. Mas aquele que será possivelmente mais marcante refere-se à própria música germânica, contrapondo intérpretes conservadores, que excluem do seu cânone as novas linguagens expressionistas e dodecafónicas, aos vanguardistas que consideram que estas, sim, são as que permitem dar a necessária continuidade a uma Deutschtum modernista e não anacrónica. Desvelam-se desta crise dois sistemas interpretativos correspondendo ao que cada facção projecta como a sua ética: uma inspiração nostálgica nos modelos do passado, e uma suposta reformulação das regras de interpretação com base em preceitos da nova composição e teoria musical; ambas apenas parcialmente se cumprem. No seio destes discursos surge a figura conciliatória de Johannes Brahms que, geralmente ultrapassadas na mente destes intérpretes as clivagens da "Guerra dos Românticos", é apropriada por ambos os lados como charneira entre passado e presente: paradoxalmente, um mesmo modelo composicional e de ética interpretativa para futuros que se anunciam radicalmente diferentes.
No caso da cultura austro-alemã, esta crítica assume tendencialmente uma particularidade: no imaginário germânico, o passado ganha forma como fonte genuína da identidade, Deutschtum, legitimizando a rejeição
de determinados valores da modernidade considerados estrangeiros (ocidentais) e decadentes. Na prática, esta noção identitária não é estanque nem sempre propriamente étnica, tal como o demonstra a apropriação de variadas figuras não germânicas para o(s) cânone(s) da Deutschtum. Por outro lado, também fora dos territórios germanófonos se encontram fortes correntes germanófilas, subscrevendo aberta ou
tacitamente os valores artísticos subjacentes à idealizada identidade germânica.
Porém, definindo-se em boa parte num quadro de negação, a noção de Deutschtum em finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, agudizada pelas tensões bélicas, vive de um sistema dicotómico de valores opondo aquilo que é supostamente alemão àquilo que o não é: cultura (Kultur) / civilização (Zivilization); comunidade (Gemeinschaft) / sociedade
(Gesellschaft); profundidade / superficialidade; idealismo / materialismo; etc. A arte e, especialmente, a música austro-alemã, como metáfora do espírito no centro da identidade germânica, traduz para os seus discursos essas noções.
Existindo já alguma literatura a relacionar Deutschtum e composição, crítica, teoria e análise musical, no domínio da interpretação esta é ainda apenas pontual. Como se manifestam então noções de Deutschtum em intérpretes que atravessam esta época, e que consequências têm elas na sua conceptualização musical e visão para o futuro?
Procuraremos nesta comunicação dar um contributo para esclarecer estas questões, com um foco em pianistas germânicos nascidos sobretudo nas duas últimas décadas do século XIX. À semelhança de outros artistas de uma primeira vaga modernista, referências a Deutschtum e/ou aos seus valores são recorrentes e, até certo ponto, estruturantes em certos aspectos do seu pensamento, tornando-se este conceito num agente de polarização em vários eixos. O mais óbvio será, talvez, o pseudo-étnico, que opõe com frequência as características presumidas da música alemã em especial às da francesa. Mas aquele que será possivelmente mais marcante refere-se à própria música germânica, contrapondo intérpretes conservadores, que excluem do seu cânone as novas linguagens expressionistas e dodecafónicas, aos vanguardistas que consideram que estas, sim, são as que permitem dar a necessária continuidade a uma Deutschtum modernista e não anacrónica. Desvelam-se desta crise dois sistemas interpretativos correspondendo ao que cada facção projecta como a sua ética: uma inspiração nostálgica nos modelos do passado, e uma suposta reformulação das regras de interpretação com base em preceitos da nova composição e teoria musical; ambas apenas parcialmente se cumprem. No seio destes discursos surge a figura conciliatória de Johannes Brahms que, geralmente ultrapassadas na mente destes intérpretes as clivagens da "Guerra dos Românticos", é apropriada por ambos os lados como charneira entre passado e presente: paradoxalmente, um mesmo modelo composicional e de ética interpretativa para futuros que se anunciam radicalmente diferentes.
Original language | Portuguese |
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Pages | 61-62 |
Number of pages | 2 |
Publication status | Published - 28 Sept 2023 |
Event | XII ENIM 2023 - Real Edifício de Mafra , Mafra Duration: 28 Sept 2023 → … |
Conference
Conference | XII ENIM 2023 |
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City | Mafra |
Period | 28/09/23 → … |
Keywords
- Deutschtum
- Germanic Pianists
- Early 20th Century