Abstract
No início da década de 1760, nas vizinhas capitanias atlânticas de Pernambuco e Baía-de-Todos os-Santos,dois reputados músicos escreveram obras teóricas que se consideram marcos significativos da história cultural do Brasil. Contrastando no escopo, dimensão e conteúdo, a Escola de Canto de Orgaõ (1760) de Caetano de Melo de Jesus, com 1.260 páginas manuscritas,e a Arte de Solfejar (1761) de Luiz Álvares Pinto, método abreviado de 50 páginas, são confrontadas nos seus elementos comuns e mundivisões divergentes, refletindo distintas matrizes filosóficas.O presbítero baiano Caetano de Melo, mestre de capela da Sé de Salvador, teria já vivido meia década quando concluiu a segunda parte da Escola, uma summa escolástica sobre música modelada em plena época de declínio do seu modelo retórico e literário. Não obstante os esforços de singularização do discurso, Caetano inscreve-se inelutavelmente na «sistemática da citação», à imagem de Cerone ou Kircher, conformando-se ao que Luís Carmelo descreve como«horizonte da promessa» escatológica: sendo a música «aquella nobilissima sciencia, que S.Agostinho proclama Arte Divina: … a sua nobreza naõ era conhecida, antes despresada na terra: Quoniam vilescit in terris: ameaça áo mundo com dizer que tornará a recolher-se no Ceo». Nesta visão de laivos neoplatónicos, toda a criação intelectual é perspetivada como a releitura de um discurso divino, único e transcendente que tudo fundamenta.Enquanto isso, o mulato pernambucano Luiz Álvares Pinto, recém-regressado de uma longa estadia em Lisboa,restabelecia-se na cidade de Recife, onde seria professor de primeiras letras, mestre de música,dramaturgo e militar. Em 1761 escrevia a Arte de Solfejar, um método prático de solfejo, que seria posteriormente revisto e ampliado, dando origem ao mais robusto Muzico e moderno systema(1776). A ampliação do texto nesta segunda obra manteve os elementos estáveis e comuns,acentuando o pendor para a simplificação e clarificação racional do método. Bebendo em parte nas mesmas fontes teóricas, como Cerone, a Arte de Solfejar evidencia um esforço de inocular na secular solmização uma visão «moderna» cartesiana, inspirada nas Luzes da Enciclopédie. Ao explicar o solfejo heptacordal, «hù methodo para cantar com segurança, e sem o rodeio formidolozo das Mutanças...», o pernambucano convoca o «horizonte da afirmação» da autonomiado sujeito, a capacidade de interpretar por si próprio a natureza, desvinculado de um plano de ordem superior. A sua atitude é epistemologicamente reformadora e antiescolástica: «Oprincipiante ... quer menor explicação [do Mestre] … achará muitas vezes ... tão confusos que não os entenderá. Eu não tenho vaãngloria de sabio. Estes errão». O presente trabalho problematiza um método analítico capaz de confrontar textos tão díspares como a abreviada Arte de Solfejar e um discurso prolixo como a Escola de Caetano. Sendo que a organização dos tratados de música em geral se desenvolvia com base no «esqueleto» constituído pelos conceitos técnicos da solmização, tal método parece ser viável e mesmo aconselhável. Mais ainda do que a matéria teórico-musical, são os cenários filosófico-ideológicos veiculados pelos autores. De salientar a revisão fundamental introduzida por Álvares Pinto: a superação da tradicional dicotomia cantochão / canto de órgão pelo conceito comum de solfejo, aplicável a qualquer dos domínios da música.
Original language | Portuguese |
---|---|
Title of host publication | VII Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ «Música no Universo Ibero-Afro-Americano: Desafios Interdisciplinares» |
Editors | Maria Alice Volpe, Ilza Nogueira |
Place of Publication | Rio de Janeiro |
Publisher | Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) |
ISBN (Print) | 978-85-65537-12-4 |
Publication status | Published - 2016 |