#enfrentaroCOVID – 3. Communitas

Research output: Other contribution

Abstract

Não será decerto descabido olhar para o período de confinamento como sendo uma passagem entre a vida normal e a vida pós-normal, ou entre o velho normal e o novo normal. Neste percurso, as fases dos ritos de passagem descritas por Arnold Van Gennep – separação, liminaridade e reagregação[1] – e esquematizadas no diagrama mostrado acima são facilmente discerníveis. Por exemplo, alguns profissionais das atividades tidas por não fundamentais para debelar a pandemia da COVID-19 ou para manter os serviços essenciais a funcionar foram desinvestidos do seu estatuto de agentes economicamente úteis e impelidos a projetar a sua vida em função das repercussões incertas do lay off, tendo, em muitos casos, que recorrer a medidas de apoio e de segurança social. Neste exemplo, o desinvestimento de estatuto separa estes profissionais dos profissionais de plena participação (o seu anterior estatuto), colocando-os num plano de liminaridade durante o qual são incitados a explorar as possibilidades de readquirirem a participação plena e eventualmente serem reagregados (incorporação num novo estatuto).

O processo de separação foi sentido por virtualmente toda a gente. Desde a interrupção das relações laborais típicas, visada no exemplo, à interrupção de relações sociais, familiares, amorosas, etc., virtualmente, todas as pessoas experimentaram uma separação das esferas relacionais habituais. Na sequência, em particular quando a separação foi provocada pelo confinamento, a vida das pessoas foi colocada no limiar da estrutura comum de funcionamento da sociedade. Entretanto, elas mantêm a esperança de que, no final do período de confinamento, a sua vida seja plenamente reagregada à estrutura, agora dotada de diferentes atributos e concretizada de diferentes modos.

Acrescentando forma ao conteúdo, poderemos entender o período de confinamento como uma fase de liminaridade entre as fases de separação e de reagregação que, no conjunto, envolvem os indivíduos e as instituições num ritual de passagem ou transformação. Neste sentido, o período de confinamento corresponde à anti-estrutura.[2]

Partindo de alguns dos conceitos fundamentais do estudo da antropologia dos ritos de passagem, e sobrevoando os pormenores das três fases do processo que os constituem descritos por Van Gennep, neste pequeno ensaio, convido o leitor a refletir comigo sobre o significado de um tipo especial de atividades realizadas por algumas pessoas no Twitter. Trata-se de atividades com forte pendor artístico, de expressão espontânea e reflexividade plural, inspiradas por e promotoras daquilo a que Bergson chamou de ‘moralidade aberta’[3] e cuja performatividade Victor Turner entende ser particularmente significativa durante a fase de liminaridade. Para apoiar a reflexão, aludirei a quatro atividades desse tipo realizadas no Twitter durante o confinamento, focando duas com maior atenção: uma atividade falhada de redação de uma história sobre a vida durante a COVID-19 e uma atividade bem sucedida de desenho e pintura de um quadro com motivos alusivos à COVID-19. A finalidade do ensaio não é, como explicarei adiante, analisar estes produtos, mas sim refletir sobre as suas condições de produção no quadro fornecido por duas das teorias sobre os ritos de passagem que mais aceitação e reconhecimento colhem no seio da comunidade dos antropólogos.
Original languagePortuguese
TypeUm blogue colectivo sobre os tempos vividos em contexto de pandemia
Media of outputCONFINARIA – Etnografias em Tempos de Pandemia
PublisherCentro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)
Publication statusPublished - 1 Jun 2020

Keywords

  • Communitas
  • Confinamento
  • Estrutura
  • Reflexividades plurais

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