Description
Ainda que caraterizado pela existência de regras gramaticais, o latim é uma língua que admite certa flexibilidade na forma como os enunciados são construídos. Esta flexibilidade é notória nalguns verbos selecionados como auxiliares para a construção de estruturas perifrásticas como o pretérito perfeito passivo. A título de exemplo, o corpus epigráfico medieval integra ocorrências de construções em que esta categoria gramatical ora é construída com base no auxiliar est (perífrases-E), ora com base no auxiliar fuit (perífrases-F). Partindo da ideia de que a perífrase estabelece uma relação entre um verbo auxiliar e um particípio passado, é fácil de se notar que a utilização da primeira forma revela uma incongruência (mismatch) por meio da qual o tempo da construção diverge do tempo do auxiliar.Numa perspetiva diacrónica, é admissível a hipótese que sugere que a primeira forma teria passado por um processo de obsolescência para efeitos de marcação da categoria verbal, na transição do latim para o português. Este processo terá conduzido à resolução da incongruência identificada, na medida em que apenas a segunda forma passou a ser usada para marcar a terceira pessoa do singular do pretérito perfeito passivo. Neste processo terão intervindo vários fatores: (1) a oposição entre os valores de tempo e aspeto, visível na semântica resultativa das perífrases-E e na semântica pontual das perífrases-F; (2) a relação entre sinteticidade e analiticidade caraterística dos sistemas do infectum e do perfectum; (3) o desaparecimento progressivo da classe de verbos depoentes; (4) a atribuição de novos valores semânticos a velhas estruturas linguísticas; (5) e a relação entre transparência e opacidade na interpretação de estruturas linguísticas em competição.
Além disso, é necessário ter-se em linha de conta que os locutores tendem a fazer inferências em situações de uso concretas, visando esclarecer o significado de algumas palavras ou estruturas e preferindo formas transparentes em detrimento de formas opacas. Quando estas inferências são repetidas, elas tornam-se também numa parte do significado inerente a essas mesmas palavras ou estruturas, despoletando assim um processo em que uma das formas em uso tende a eliminar a outra, desde que ambas sirvam o mesmo propósito. Este é o fenómeno que tem sido genericamente identificado na bibliografia da especialidade como “competição”.
Partindo destes pressupostos, a nossa intenção com esta proposta de comunicação é contribuir para o esclarecimento da forma como se terá processado, numa perspetiva diacrónica, a evolução da categoria verbal identificada com a terceira pessoa do singular do pretérito perfeito passivo, do latim para o português, tendo como base o corpus epigráfico medieval. Analisaremos o processo de mudança linguística salientando a ocorrência de vários fenómenos (morfológicos, sintáticos, semânticos) e estabelecendo uma relação com o processo de mudança à luz de duas hipóteses: (1) a obsolescência das perífrases-E (o presente desaparece porque a marcação morfológica não coincide com a propriedade semântica); e (2) a especialização das perífrases-E e -F (as duas formas mantêm-se para efeitos de construção de categorias gramaticais porque denotam valores diferentes).
Period | 1 Jul 2023 |
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Event title | XVII Fórum de Partilha Linguística / 17th Forum for Linguistic Sharing |
Event type | Conference |
Location | PortugalShow on map |
Degree of Recognition | International |
Keywords
- Linguística histórica
- epigrafia medieval
- pretérito perfeito passivo
- competição
- mudança
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Livro de resumos. XVII Fórum de Partilha Linguística
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