Crónicas, comentários e críticas: uma leitura lingística

Como ponto de partida, assumimos que a descrição dos textos (de diferentes géneros) não pode dispensar a análise das formas e construções linguísticas em ocorrência, tal como a descrição e a análise linguísticas podem beneficiar de uma observação textualmente contextualizada. Uma via para operacionalizar este princípio (entre várias outras que podem ser tidas em conta) passa por considerar quatro componentes que, na sequência de trabalhos anteriores, enunciamos nos seguintes termos: percursos temporais, à volta dos sujeitos, percursos temáticos e à volta do sentido (Correia & Coutinho, 2022). Esta proposta permite integrar contributos de natureza teórica que, embora diferentes, se podem complementar: uma perspetiva de análise transcategorial (Culioli, 1999, e.o.) e uma perspetiva sociointeracionista (Bronckart, 1997, e. o.).

Nesta comunicação, pretendemos analisar textos de três géneros que se podem considerar próximos, na medida em que envolvem uma dimensão apreciativa: crónicas, comentários e críticas. O destaque dado à identificação e descrição das marcas linguísticas que estabelecem e definem esse traço comum contribuirá com certeza para uma melhor compreensão do funcionamento dos géneros – isto é, para o reconhecimento de uma possível organização “em nebulosa” (Bronckart, 1997), que permite relativizar modelos rígidos. Por outro lado, a dimensão apreciativa articula-se com outros fatores que, tal como já referido, envolvem tempos, sujeitos, percursos temáticos e (construção do) sentido – com preponderâncias diferentes e em diferentes configurações, como mostrarão as análises a desenvolver. Deste ponto de vista, e apesar da organização em nebulosa, parece possível salientar alguns parâmetros e/ou marcadores de género (Gonçalves & Miranda, 2007; Miranda, 2010), suscetíveis de explicar a identidade diferencial dos géneros em causa (o que, em última análise, explica a sua permanência enquanto tal). Finalmente, as diferentes configurações textuais que se podem observar permitem (melhor) explicar a ocorrência de valores temporais e aspetuais específicos, evidenciando-se assim uma questão central, na perspetiva das relações entre gramática e texto: não se trata apenas de contextualizar textualmente as questões gramaticais, mas também – e talvez sobretudo – de compreender em que medida o funcionamento textual pode ter impacto sobre a compreensão do funcionamento da(s) língua(s). Assim entendido o objetivo geral do trabalho, centraremos a atenção na análise das formas e das construções presentes em textos que se integram nos três géneros acima referidos. Por um lado, destacaremos sucessivos processos de localização (espacial, temporal e nocional), observando-se que, muitas vezes, estas localizações podem determinar o sentido do texto em que ocorrem. Por outro lado, a deformabilidade associada a um mesmo tempo gramatical (como, por exemplo, as ocorrências de Presente do IND com valor de continuidade ou de sobreposição temporal, de IMP do IND – que define um outro plano enunciativo – ou de PPS, com valor não perfetivo) permite (re)construir os percursos temporais que caracterizam um dado texto.

Para além de outras propostas teremos em conta, nesta análise, e.o, os trabalhos de Campos 1997, Oliveira 2013, Ferreira 2023, Coutinho, 2023. A análise incidirá sobre textos publicados em jornais e/ou recolhidos em livro. Em termos metodológicos, privilegiar-se-á uma abordagem qualitativa e interpretativa – que não dispensa, no entanto, algumas condições de uniformidade ou mesmo de representatividade dos textos em análise. A metodologia usada assenta no pressuposto teórico-epistemológico da complexidade dos textos (Coutinho, 2003) – que dependem de constrangimentos genológicos, por um lado, mas permanecem irredutivelmente singulares, por outro. Julgamos que esta questão ganha ainda mais relevância no tempo da Inteligência Artificial, que repete até à exaustão produtos a que chama ‘textos’.