Bolsa de doutoramento pela FCT (2021-2023)

Activity: OtherTypes of Award - Other distinction

Description

Em busca da palavra perdida: natureza, infância e memória em “Corpo de Baile’”, de João Guimarães Rosa": Por meio de sua escrita João Guimarães Rosa conduz o leitor a refletir sobre a palavra até conseguir extrair dela outro entendimento, e não apenas a compreensão do enredo da história que está a ser contada. Durante a leitura das obras desse escritor, percebe-se que a palavra tem carga musical e semântica. E, em consonância com todo o pensamento atual, que é pensar a natureza e as funções da linguagem, percebe-se a que a grande novidade da obra rosiana continua a ser o modo como enfrenta a palavra.
Se se pode afirmar que a voz da natureza em desaparecimento está intimamente ligada com o ponto de passagem entre natureza e escrita “[...] e o projeto linguístico de Rosa está próximo da conjugação entre língua morta e a revitalização da linguagem”(ROWLAND: 2011, p. 111), qual seria a relação entre a morte das palavras e a morte da natureza nas sete narrativas de “Corpo de Baile”? Para responder a essa questão, considerarei as ideias postuladas Paul Zumthor e Mikhail Bakhtin, durante a análise das narrativas.
Giorgio Agamben defende que antes de transmitir seja lá o que for, o homem tem necessidade de transmitir a linguagem (2008: 93).
Em uma estrutura circular, onde infância e linguagem parecem remeter uma à outra, pode-se dizer que no ciclo de narrativas de “Corpo de Baile”, a infância age sobre a linguagem, constituindo-a de maneira peculiar. A presença das personagens Miguilim e Manuelzão, nas duas primeiras novelas, já evidencia o binômio infância/velhice. Contudo, esse aspeto é verificável também tanto no encontro entre o boiadeiro Lélio e a velha Lina, em “A estória de Lélio e Lina”; como na relação entre o vaqueiro Grivo e seu patrão, em “Cara-de-Bronze”. Papel relevante tem ainda o menino Joãozezim em “Recado do morro”. Em “Buriti” os jogos de sedução entre Lalinha e Liodoro também remetem ao binômio juventude/velhice. Mas que papel podem ter tais encontros na constituição das narrativas, se se considerar que “é a infância a experiência transcendental da diferença entre língua e fala?”(AGAMBEN, 2008: 62). A leitura de pensadores como Giorgio Agamben e Jean-François Lyotard, no que diz respeito à relação entre infância e linguagem, embasará a análise dessa questão durante a redação da tese.
O movimento das personagens nas narrativas de “Corpo de Baile” é bastante evidente. Grivo viaja pelos gerais em busca da palavra poética, em “Cara-de-Bronze”; no final de “Campo geral” Miguilim parte do Mutum; em “Uma estória de amor”, Manuelzão viaja para tanger uma boiada; na companhia de Lina, Lélio cavalga, deixando para trás a vida no Pinhém; Soropita vai do Ão ao Andrequicé para ouvir a novela de rádio, em “Dão-lalalão”; Pedro Orósio acompanha uma comitiva pelo sertão, em o “Recado do morro” e, na última narrativa, Miguel retorna ao Buriti Bom, em movimento circular, já que se trata da mesma personagem Miguilim da primeira novela.
Todavia, além desse percurso físico há o movimento da palavra na memória das personagens. É por meio das lembranças de fatos vividos na primeira infância que Miguilim experimenta a linguagem. A partir da recuperação de narrativas da tradição oral, Joana Xaviel e Camilo dão outra dimensão à palavra em “Uma estória de amor”. Em “Dão-lalalão”, toda a narrativa parece ser construída em um movimento de ida e volta da memória, como se Soropita realizasse duas viagens, uma de regresso à casa e outra por meio das lembranças. Em “Recado do morro”, pode-se verificar a maneira complexa como o reconhecimento de uma mensagem, decodificada por meio da memória, livra um homem de uma emboscada. Prodigioso em fundir vários pontos de vista na construção de suas narrativas, em “Buriti” Rosa urde grande parte da narrativa por meio das recordações das personagens Miguel e Lalinha. Para discutir a relação entre memória/esquecimento a serviço da linguagem, me apoiarei nas ideias de pensadores como Paul Ricoer, Gérard Genette e Jacques Derrida.
Para a análise do corpus estou a usar o método proposto por Erich Auerbach, que pressupõe uma correlação entre as partes e o todo, tendo em mente que o entendimento das partes esclarece o todo: “Para atingir um grande objetivo sintético é necessário inicialmente encontrar um ponto de partida, um ponto de apoio que permitirá atacar o problema. Deve-se isolar um grupo bem delimitado e controlável de fenômenos, e a interpretação desses fenômenos deve ter força de irradiação suficiente para interpretar um conjunto de fenômenos muito mais amplo do que o original”(2007: 369). Essa interpretação hermenêutica é circular e implica um movimento de vaivém das partes do todo previamente compreendido, onde já se encontra quando inicia a exegese. Nesse sentido, os conceitos elaborados durante a interpretação poderão retificar, ampliar e corrigir, em benefício do correto entendimento do sentido, os feixes de questões de onde se partiu.
De acordo com Abel Barros Baptista: “A aventura da literatura brasileira é o melhor exemplo da modernidade, das dúvidas e ilusões, das tensões e contradições, das assimilações e exclusões, do corte com o passado e da recuperação do passado, em suma, de tudo o que faz da modernidade uma condição em uma época complexa – aquela condição e aquela época que herdamos e em que ainda vivemos.”(2005: 35). Certa da modernidade da obra rosiana, buscarei compreender a literatura brasileira como fenómeno mundial e não apenas brasileiro, a partir da análise das sete narrativas de “Corpo de baile” como um sistema, a partir dos eixos: natureza/oralidade, infância/velhice, memória/esquecimento, pois esses são conceitos aplicáveis à análise de outras obras literárias que, independentemente da nacionalidade, permitam discutir a importância da constituição e/ou revitalização da linguagem. Entretanto, a maneira complexa como Rosa não apenas compôs, mas acompanhou a tradução de suas obras para o francês, espanhol, inglês e alemão, permitirá análise profunda dessas questões.

Adequação da equipe de orientação e da instituição de acolhimento
- A investigação em andamento tem a orientação da Prof. Dra. Clara Rowland, especialista nos estudos rosianos, com reconhecimento internacional e vários ensaios publicados em periódicos académicos e livros sobre João Guimarães Rosa, inclusive no Brasil. A obra de sua autoria, "A forma do meio: livro e narração na obra de João Guimarães Rosa", foi publicada pela editora da Unicamp, importante universidade brasileira.
- O doutoramento está a ser realizado no Departamento de Estudos Portugueses, e está inserido no IELT (Instituto de Estudos de Literatura Tradicional), onde sou membro investigadora desde 2018.
- Por meio do eixo de investigação «Património imaterial e imaginário simbólico», o IELT assume-se como o único centro em Portugal a dedicar-se a um estudo da tradição entendida como processo dinâmico de construção e de afirmação identitária e cultural. Refundado em 2015, originando uma nova unidade de investigação – o Instituto de Estudos de Literatura e Tradição – Patrimónios, Artes e Culturas, (classificação FCT: Muito Bom, em 2019).
-O núcleo apresenta um projeto científico singular no mapa da investigação: o estudo da literatura na sua relação complexa, plurifacetada e multidirecional com a tradição, entendida não como memória estática, mas como vasto reservatório de formas, imagens, estruturas e experiências que participam na construção e transformação das identidades culturais, poéticas e artísticas.
- O projeto “Em busca da palavra perdida: natureza, infância e memória em “Corpo de Baile’”, de João Guimarães Rosa", insere-se no eixo de investigação: “Tradição literária, textos, artes, teorias”, que procura explorar as linhas de continuidade e de fronteira entre a tradição, a literatura e as outras artes.
- A produção literária de João Guimarães Rosa indubitavelmente situa-se na vanguarda da narrativa contemporânea, mas, paradoxalmente, essa obra tão agudamente alinhada com a modernidade nutre-se de elementos resgatados da tradição oral. O grande desafio dos escritores brasileiros que incorporam saberes tradicionais em sua produção literária, caso de Guimarães Rosa, é perceber que não se trata apenas de escrever resgatando elementos da tradição oral, mas produzir uma criação artística capaz de mobilizar a riqueza oferecida pela peculiaridade do processo de colonização. Sobretudo quando diferentes etnias, tanto ameríndias como africanas, se entrelaçaram à língua dominante, que, por sua vez, já comporta em suas origens outras assimilações, adquiridas durante seu processo formativo, caso das línguas indo-europeias. Portanto, a pesquisa será um contributo para os seguintes objetivos que o IELT privilegia: 1. “Estabelecer relações entre modernidade literária, memória e tradição e o estatuto da modernidade como tradição; 2. Perceber o estudo do fenómeno literário como espaço desdobrável e expansivo através da sua dimensão transsemiótica (relação com outras artes e modalidades discursivas) e dialogal.
- Muitos dados já coligidos nos arquivos rosianos no Brasil, que serão usados durante a escrita da tese, também podem contribuir para o seguinte objetivo: "Conceber o arquivo como espaço de confluência entre memória, tradição e reinvenção e, nesta perspectiva, espaço privilegiado do pensamento da articulação entre literatura e tradição.”
Period1 Sept 20211 Sept 2023
Degree of RecognitionNational

Keywords

  • Literatura brasileira
  • João Guimarães Rosa
  • Corpo de Baile